23 de mar. de 2014

Sete cores

Certo homem, um dia disse
me tirando lá do meu sossego
Choraí ô menino, bora viver.

Concreto e asfalto cercava a gente
que andava a esmo, esmola
E era tanta a pressa, preguiça
que até a alma se esfola.

E passa tempo, passa boiada
galho de cana debruçado na estrada
Já outrora era outra hora, ô trem
que até me esqueci de onde é que vem.

Daí segue que segue a vida
Dia após dia, arré ó dia!
Entre ruas e areias e papel
mas aqui longe é que a galinha pia.

Corre menino, ó lá o homem lá!
Sobe no telhado, no muro do quintal
Vai vê longe, enquanto ainda dá.

Vi então deus, nascer e morrer
e toda sorte de amores e amoras
Doces, que os passarinhos vem comer
O jeito é lambuzar de todas as cores.

Estrela da manhã, manhãzinha
Meio dia é meia noite do outro lado
Procuro mesmo uma sombrinha
Pra gente deitar aconchegado. 




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Casamento

     Era uma vez um casamento, algo convencional
Na igreja e tudo, quem diria
Que o casal, dito até meio modernoso
Fosse acabar assim um dia
Se aquietar, ajustar na sociedade, coisa e tal
Na missa mesmo, nenhum deles ia
Mas diz a mãe o pai e os avós
E claro, diz também a titia
Que sem a benção de deus tudo ia acabar mal

E dá-lhe a convidar a todos, em peso a parentada 
E também velhos amigos
Contanto que não assim tão velhos
Pois não convém, convenhamos
Que acabe o casamento com saudade requentada
Ou até os muito inconvenientes
Como soem ser os que não crescem
Eternos adolescentes mesquinhos
Pobres diabos, presos na juventude transviada

Eis que, noivo ou noiva, não se sabe dos dois qual 
Por ironia do destino, teve um dia
Uma improvável amizade
Com um tipo de acabou, coitado
Indo pro circo, abandonando uma carreira no jornal
Imaginou-se, assim indefinidamente
Que seria assim diferente
Dar um ar moderno e descolado
Para que o tal evento fosse mesmo sensacional

(Ficariam bonitas no álbum as fotos dos malabares
Tecidos multicoloridos e pessoas habilidosas fazendo seus salamaleques)

Pois bem, contatou-se o tal amigo, muito boa praça
E combinaram a intervenção
O custo? Ora, meu camarada
Veja bem, essas festas são caras
Custa o padre, que benção de deus não vem de graça
Arranjos, decorações, convites
Vestido, carrão, flores, comes e bebes
Aliás, muita comida pra todos, veja bem
E que trabalho há de ser, o que por diversão se faça?

E qual não foi a surpresa quando, ao chegar a carroça
Tal qual um fusca de palhaço
Apinhada de figuras peculiares
Em procissão solene no pátio da igreja
Lá vinham os noivos, não os de facto, mas os de troça
Ele de terno preto, bigode
Uma máscula caricatura
Enquanto a noiva, só de grinalda
Vestida de rebrilhos de purpurina, esguia e delicada moça
Um palhaço de estola sacerdotal
De semblante lunático e cabelo arco-íris
Desengonçado nos seus sapatos grandes
Fazendo às vezes de padre, com mímica rezava sua missa.

Todo um séquito de tipos curiosos vinha na sequência 
À guisa de padrinhos e madrinhas
Ridiculamente em roupas, topetes
Poses e ares pomposos, um escárnio
Exagero calculado, com uma saudável dose de demência
Descendo os degraus da caçamba
Sob os olhares assombrados dos convidados
Seguiram diretamente para dentro da igreja
O padre e os noivos pelo corredor em demorada indolência
Os demais sentavam-se nos bancos
Em atabalhoada disciplina
Nos lugares vagos ali espalhados
Pois os convidados já garantiram seu assento de preferência.

Finda a marcha do padre palhaço e do arremedo de casal 
De junto ao púlpito orquestram
O chamamento dos padrinhos 
Escolhidos ali mesmo, de improviso
O que dá início a tamanha balbúrdia e gritaria sem igual
Quando o padre levantava a mão
Dedo em riste apontando os próximos
Todos se comportam como plateia ansiosa
Em programa de tevê, pra ganhar prêmio de cem real
Em meio à confusão levantavam eufóricos
Inadvertidamente atropelando os convivas
Ao que um senhor da trupe, negro e alto
Porte de jogador de basquete, iniciou sua ação brutal
Exibindo proezas físicas admiráveis
Caminhando e saltando por sobre os bancos
Afim de disciplinar os mais exaltados
Ralhava e dava belos safanões no público em geral
Sem sucesso em manter a ordem
Apenas aumentava a agitação
Pois é de praxe rir dos outros
Quando não é você que está se dando mal. 

(Enquanto isso iam os escolhidos se amontoando lá na frente
Todos se pavoneando, apinhados, pois mal cabia tanta gente)

Tudo aquietou quando o padre palhaço iniciou a preleção
Com direito até, quem diria
Numa tela improvisada no altar
Desenhos herméticos e símbolos obscuros
Se mostravam aos olhos atentos, uma elaborada projeção 
Todos ouviam em reverente silêncio
O discurso nalguma língua incompreensível
Perdida, morta, quiçá inventada
Falando de coisas muito profundas, desconhecidas da razão

Avança cerimônia, e uma coreografia toma forma lentamente 
Os noivos e os padrinhos, em sincronia
Com muito afinco e concentração
Numa dança que se diria cosmogônica
(Mas isso já não passa da mais pura especulação, é evidente)
Como que hipnotizados, os demais os seguem
E ao final todos se misturam na coreografia
Caótica, extática, orgíaca, catártica
E já não se distingue o casal, o sacerdote, palhaço ou parente.








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